No final do século passado e início do atual, movimentos, comunidades organizadas e trabalhadores se uniram contra as forças que buscavam mercantilizar a água, comercializar e privatizar sua gestão e abastecimento. A cidade boliviana de Cochabamba foi o primeiro lugar onde a privatização foi revertida, em 2000, e onde a empresa privatizada foi devolvida às mãos públicas. Em 2004, o Uruguai foi um dos primeiros países a alterar sua Constituição para proteger a água da privatização.
Movimentos da África, das Américas, da Ásia e da Europa uniram-se em espaços já existentes e formaram novas redes para construir um movimento global por justiça hídrica e compartilhar experiências, manter solidariedade uns com os outros e lutar em todo o mundo. Entre outras vitórias, em julho de 2010 esse movimento conseguiu que a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovasse uma resolução reconhecendo os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. Também se iniciou a remunicipalização dos serviços de água em vários países, devolvendo o abastecimento de água e o esgotamento sanitário ao controle público, e construindo visões e mecanismos alternativos de apoio às lutas para proteção e defesa da água pública.
Com o tempo, o movimento das águas aprendeu que defender a água pública e devolver os serviços às mãos públicas não era suficiente, e começou a se concentrar também em democratizar e melhorar os serviços públicos de água. Parcerias entre sistemas comunitários de água e esgotamento sanitário e empresas públicas progressistas desempenharam um papel fundamental nesse esforço, aproveitando a experiência e os recursos de ambos para fortalecer alternativas democráticas de gerenciamento de ecossistemas e serviços de água para a vida, e não para o lucro. No processo, uma ampla variedade de sistemas de água, lutas e organizações, incluindo comunidades rurais, camponesas e indígenas, trabalharam para ampliar, revitalizar e expandir o alcance do movimento pela água.
No entanto, as empresas que lucram com a água desenvolveram novas táticas e estratégias para ampliar a participação privada no setor. Em particular, conseguiram capturar instituições internacionais de governança da água para fazer avançar sua agenda próprivatização. Hoje, o desenvolvimento econômico extrativo e as mudanças climáticas ameaçam os sistemas de água do mundo, enquanto bilhões de pessoas permanecem sem acesso à água potável segura e ao esgotamento sanitário. Apesar do fracasso sistemático das "soluções" de mercado, que muitas vezes estão escondidas sob a linguagem das "parcerias", a governança da água e instituições voltadas para o desenvolvimento sustentam que a única maneira de enfrentar esses desafios é continuar a privatizar e financeirizar¹ a água em todas as suas formas.
O movimento global pela justiça da água continua se organizando diante dessas ameaças e lutando contra as crescentes desigualdades socioeconômicas que restringem o acesso à água com base em gênero, raça, classe e outras formas de opressão. Essas lógicas também diferenciam os impactos e as consequências da mudança climática e dos desastres relacionados, a maioria dos quais envolve a água e afeta desproporcionalmente as populações do Sul, que são tanto as menos responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa e as menos capazes de se adaptar, devido ao colonialismo e ao imperialismo.
O trabalho cotidiano de organização, para proteger, defender e desenvolver ecossistemas e serviços público-comunitários de água para toda a população é uma carga de trabalho que recai esmagadoramente sobre as mulheres.² O movimento da justiça pela água concentra-se na dimensão de gênero e cuidado que também lidera e sustenta as lutas contra a privatização e a financeirização. As defensoras da água continuam a desenvolver e usar críticas feministas a esses processos e trabalham para identificar e impedir a reprodução das desigualdades de gênero dentro dos próprios movimentos e organizações da água. Isso constitui tanto a primeira linha de resistência quanto o alicerce sobre os quais as alternativas são construídas.
De 29 de novembro a 2 de dezembro de 2022, movimentos e organizações sociais progressistas de todo o mundo se reuniram, presencial e virtualmente, na conferência "Nosso Futuro é Público", realizada em Santiago, Chile, para compartilhar, debater e fortalecer as lutas pelos serviços públicos e o papel essencial que eles desempenham em nossas sociedades e devem desempenhar em nosso futuro. Após dois anos de restrições pandêmicas, a conferência proporcionou ao movimento global por justiça hídrica uma oportunidade de renovar nossa troca de experiências e concepções; participar de análises e debates; elevar a consciência crítica; construir novas relações e fortalecer as alianças existentes; reforçar a dinâmica política em torno da importância da gestão e dos serviços públicos e democráticos de água; e revisitar a noção de "público", explorando formas alternativas de gestão da água.
Este relatório pretende refletir a situação atual do movimento da água. Ele emerge em um momento em que as crises hídricas estão aumentando em muitas áreas e que já é uma crise global. Ocorre ainda no monmento em que se intensifica a captura por empresas privadas (conhecida como captura corporativa) da governança da água, bem como novas formas de privatização e financeirização se intensificam, como evidenciado na Conferência da Água da ONU, realizada em março de 2023 em Nova York. Embora essas dinâmicas ameacem a substância vital da qual toda a vida depende, "somos um rio de resistência" que busca proteger e defender a água pública e comunitária para todas e todos.